POR ESCRITO

Uma ponte para derrubar

Resenha do conto "A ponte" (1917), de Franz Kafka.

“A ponte” é um conto de Franz Kafka, publicado pela primeira vez em 1917. Quem o narra é a própria ponte, que se descreve como “fria” e “rígida”, “estendida sobre um abismo”. Há algo de humano nesta ponte: mãos, pés, cabelos, dentes, roupas, pensamentos, a possibilidade narrativa. É uma ponte, mas também um corpo que se estende e se apoia fragilmente por duas bordas movediças. A ponte se apresenta no pretérito imperfeito, “eu estava”, “eu era”, “eu me prendia”, “eu esperava”. Não existe mais, rememora apenas e é difícil entender de onde uma ponte destruída pode falar. 

A ponte recorda então do episódio que mudara o rumo estático da sua existência, sem conseguir precisar a data do acontecimento. A ponte, esquecida pelos mapas, já não podia saber os dias. Imprecisões que marcam sua vida de velhice, ausência, repetição. Lembra então que num anoitecer, um homem finalmente se aproximou, numa atmosfera de tensão e expectativa, “vinha em direção a mim, a mim”. Ao que parece, há muito tempo ninguém passava pela ponte. Pergunto de onde viria o comando que encerra o segundo parágrafo: “estenda-se, ponte, fique em posição, viga sem corrimão, segure aquele que lhe foi confiado”. Seria do homem que se aproximava? Do riacho que corria abaixo? Ou da própria ponte, que se preparava para algo desejado, ainda que desconhecido? É no terceiro e último parágrafo que sabemos, o homem que passa carrega uma bengala com ponta de ferro e dá batidas na ponte, levanta abas do seu casaco, mexe no seu cabelo, salta com os dois pés no meio do seu corpo. Que tipo de encontro seria esse? Entre a dor e outras perguntas é o que a própria ponte se questiona. Por fim, o conto termina desabando e a ponte chega ao fim, destroçada entre os cascalhos e a água do riacho, esses que por tanto tempo foram observadores distantes da sua estrutura solitária. 

Mas afinal, quem é esse homem que, ainda que tenha passado pela ponte com violência, escapou de cair junto com ela? Ou tudo não passou de delírio, espaço vazio, efeitos do tempo, falhas de memória, traços que deixaram a ponte assim, frágil, confusa? “A ponte” se estrutura em apenas três parágrafos, com duas extremidades ambíguas e uma ponte-pessoa prestes a cair no meio. Penso ainda que quem derrubou a ponte fui eu, ao ler o conto e atravessar a história, em meio à névoa que turva o texto. As dúvidas me fazem voltar para o começo, e atravessar essa misteriosa ponte mais e mais uma vez, ainda que ela sempre me confunda e termine desabando no final.


FRANÇA, Ana Claudia C. V. de. Uma ponte para derrubar. Blog Plástico Bolha, 2021. Acesso em: . Disponível em: <https://anafranca.com.br/uma-ponte-para-derrubar/>.


Publicado por Ana França

Sou professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campo de Narrativas Visuais e Produção da Imagem. No doutorado pesquisei sobre mulheres no circuito de cinema em Curitiba, entre 1976 e 1989 (PPGTE/UTFPR). Dedico-me a projetos em narrativas visuais e investigações sobre mulheres no audiovisual, nos cruzamentos entre história, narrativa, literatura, texto e imagem.