Resenha do livro "O mez da grippe" (2020, Editora Arte e Letra), de Valêncio Xavier.
“A Espanha entrou em estado de alarma“. Em março de 2020 foi assim que os jornais se referiram à primeira das muitas quarentenas no país. Passei lá três meses num confinamento cheio de restrições. Quando a pandemia começou eu vivia em Barcelona e o Brasil parecia um planeta distante. Enquanto cientistas alertavam para o perigo, muitas pessoas achavam que o novo vírus era uma bobagem. E é mesmo preciso de um tempo para rejeitá-lo e chamá-lo de loucura. Mais de um ano depois, vivo no Brasil, e a Espanha é que parece um planeta distante, no qual as pessoas já não são mais obrigadas a usar máscaras ao ar livre e boa parte da população foi vacinada. O estado de negacionismo do governo brasileiro vem sendo lentamente reconhecido por genocídio, omissão deliberada e corrupção, com a trágica morte de mais de quinhentas mil pessoas.
“O Mez da Grippe” de Valêncio Xavier, oportunamente relançado em 2020 pela editora Arte e Letra, é uma leitura que por muito tempo não escapará das suas relações com a pandemia de covid-19, na qual estamos há mais de um ano imersos e à deriva. É em Curitiba que acontece o romance-colagem de Valêncio Xavier, que tem como tema a gripe espanhola que, “n’aquella epocha”, podia ser chamada de “grippe” ou de “hespanhola”. Estão ali notícias, cartões postais, fotografias, propagandas, avisos, telegramas, tabelas, convites, agradecimentos, notas de falecimento, decretos municipais, poemas eróticos, memórias da Dona Lúcia e o anúncio de duas vagas de trabalho para cocheiros na funerária de P. Falce. Recortes de um arquivo híbrido que estabelece uma narrativa irônica e, ao mesmo tempo, enigmática.
Para enfrentar a moléstia, não faltam promessas. Por exemplo, lascas de naftalina, folhas de eucalipto, tintura de iodo e tampões de algodão com vaselina mentolada. Para os operários de fábrica bastaria água com limão. Já Creolina – “o melhor desinfectante”- fora ingerido por um presidiário, numa estratégia mal-sucedida para acabar com a própria vida. Se no primeiro lançamento em 1998 o livro tinha ares de peculiaridade, em 2021 nada disso deve soar tão estranho.
Mas há muitas outras coisas que se misturam à uma pandemia. Festinhas barulhentas, cremes de beleza, encontros amorosos, crimes violentos, tensões políticas, famílias abastadas fugindo da capital. Com uma cozinheira para acompanhar, é evidente. O “Mez da Grippe” constrói um labirinto que a cada leitura permite novos percursos e descobertas, no ir e vir das suas 74 páginas. Deixa ver nas suas esquinas a cafonice dos autoritarismos, censuras e preconceitos e os muitos abismos sociais que se escancaram durante uma pandemia, colocando em jogo a possibilidade narrativa dos recortes de arquivo. O livro é também um diário, coletivo e polifônico, sobre a passagem da “hespanhola” em Curitiba, alargando a nossa imaginação sobre como foi habitar esse pedaço do país no ano de 1918.
Para citar esse artigo como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
FRANÇA, Ana Claudia C. V. de. Literatura de arquivo: a passagem da “hespanhola” por Curitiba. Blog Plástico Bolha, 2021. Acesso em: . Disponível em: <https://anafranca.com.br/literatura-de-arquivo/>.