POR ESCRITO

Dez pras duas

Rígido, frio, analógico. Sou um relógio parado no tempo. Faz tanto que meu ponteiro menor está no dois, o maior no dez, que perdi a noção de quando vim parar aqui. Betânia uma vez me viu assim e disse que meus ponteiros eram como seus seios, um aponta para um lado, outro para o outro, dez pras duas. Dez pras duas também é o hábito de andar com os pés abertos e causa algum tipo de dor nas costas, ouvi uma vez no jornal do almoço, quando uma televisão de tubo pequena habitava o balcão amarelo da cozinha. Eu me prendia firme na parede de madeira. Fazia um barulhinho ritmado, dia e noite, sem parar. Não havia nada que eu não pudesse ver, fiz amizade com todos. Às vezes, até me sentia na liberdade de dar indiretas à geladeira, sempre guardando coisas passadas. Até que acabe a pilha, nenhum relógio deixa de ser relógio.

As coisas aconteceram sem que eu pudesse me dar conta. Um microondas trouxe o primeiro relógio digital. Mas ele perdia a hora sempre que a energia elétrica tinha uma queda e eu não me senti ameaçado. Depois, foi o telefone fixo, nunca mais o ouvi tocar na sala. Não demorou muito para o relógio de pulso da Betânia parar, suponho, em alguma gaveta. Perdemos contato, e ainda sinto saudade de quando a gente tentava sincronizar nossos tic tacs, ele, em cima da mesa, eu, acima de tudo. Um dia, eu estava como sempre, perdido em meus pensamentos circulares, e parei. Era dez pras duas. Um relógio de ponteiros nunca esquece a hora em que parou. Fica pra sempre registrado, como a última página de um diário abandonado.

Mesmo parado, permaneci algum tempo na cozinha. Por quanto tempo? Não sei dizer. Minha visão foi ficando cada vez mais turva. Um dia, um homem de macacão azul entrou. Pensei, “ele está vindo por minha causa, veio trocar minhas pilhas! pilhas novinhas!”. O homem tinha uma bugiganga horrível, pontiaguda e barulhenta, e não muito longe de mim, fez um estardalhaço na parede. Eu sentia meu corpo inteiro estremecer. Apesar de me sentir atrofiado, gritei. Quase consegui mexer um dos ponteiros. Depois disso, não lembro de quase nada. Além de turva, minha visão agora é estilhaçada. Não faz muita diferença, vivo na escuridão, e uma panela de pressão, agora minha única companhia, pergunta, “que horas são?”. É dez pras duas, é para sempre dez pras duas.


FRANÇA, Ana Claudia C. V. de. Dez pras duas. Blog Plástico Bolha, 2022. Acesso em: . Disponível em: <https://anafranca.com.br/dez-para-duas/>.


Publicado por Ana França

Sou professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campo de Narrativas Visuais e Produção da Imagem. No doutorado pesquisei sobre mulheres no circuito de cinema em Curitiba, entre 1976 e 1989 (PPGTE/UTFPR). Dedico-me a projetos em narrativas visuais e investigações sobre mulheres no audiovisual, nos cruzamentos entre história, narrativa, literatura, texto e imagem.