Aulas

O que é um diálogo?

O roteirista Robert McKee define diálogo do seguinte modo:

“Quaisquer palavras ditas por qualquer personagem a qualquer um.”

Robert mckee, 2018, p. 21.

“Dizer algo é fazer algo” (MCKEE, 2018, p. 22), e por isso os diálogos são um tipo de ação e estão intrincados aos personagens, conflitos e pontos de virada da narrativa. Para McKee é preciso estabelecer uma concepção ampla de diálogo que possa incluir: 1. o que é dito entre personagens, 2. o que diz um/a personagem para si mesmo/a ou 3. o que se diz para quem assiste.

  1. Conversas entre personagens
    Para McKee, uma conversa pode ser um duólogo, um triálogo ou um multiálogo, dependendo da quantidade de personagens que conversam. Mas a quantidade de pessoas envolvidas na conversa é apenas um entre muitos detalhes do contexto do que se fala nos filmes.

    Logo no início de Estátua, por exemplo, a mãe de Joana conversa com a babá Isabel, que está grávida de 6 meses e deve cuidar da sua filha por 10 dias. A cena apresenta um pouco de cada personagem, oferecendo algumas pistas sobre a relação entre Joana e a sua mãe, mas também sobre os sentimentos de Isabel em relação à gravidez. Em um outro momento, Isabel conversa com a sua mãe pelo telefone, conta que a menina de quem está cuidando “é um anjo”. Contudo, na composição do enquadramento, Joana aparece ao fundo, em contraluz, com os cabelos úmidos, enrolada em uma tolha de banho, uma figura ambígua e assustadora, contradizendo as impressões de Isabel ditas ao telefone. É o caso de uma cena em que o diálogo nos diz uma coisa e as imagens, outra.

    Em Fabulário Geral de um Delírio Curitibano, a protagonista é assaltada por dois homens na estação central do ônibus expresso em Curitiba. Os assaltantes procuram disfarçar o roubo de outras pessoas com gestos e sorrisos cordiais, enquanto um deles diz “Não tem dinheiro aí? Nada? Pobrinha, hein?”. Em Antes de Ontem, enquanto fotografias de família passam em slideshow, Caio Franco direciona o texto falado para a avó, como se enviasse à ela a gravação de um áudio.

    Fantasmas é um curta com praticamente um único enquadramento, enquanto em segundo plano se desenrola uma conversa entre dois personagens que não vemos em cena nunca. Uma combinação que, entre a simplicidade e a sofisticação, aos poucos nos apresenta um conflito: a impossibilidade de esquecer “Camila”.

    O recurso da voz em segundo plano também é usado em Movimento, que começa com uma mensagem de áudio de um amigo para outro.

  2. Falando consigo mesmo/a
    A protagonista de Fabulário Geral de um Delírio Curitibano é perseguida por palavras que não consegue esquecer, “Mulher. Machado. Enxada. Foice. A mulher do Machado ficou inchada e foi-se”. Em outros momentos, sua voz em segundo plano compartilha alguns pensamentos, “Eu não sou Bukowski. E aqui não é Los Angeles.” Como explica McKee (2018, p. 22), “a prosa tem o poder de invadir a mente de uma personagem e projetar o conflito interior para além do território do pensamento”. O conflito da protagonista de Fabulário Geral de um Delírio Curitibano é interno, uma lembrança inconveniente e insistente, que conhecemos logo no início do filme com o diálogo que a personagem trava consigo mesma.

    Em Três minutos, Marília deixa um recado numa secretária eletrônica. Fica a dúvida se fala consigo mesma ou com o companheiro, um mágico de circo. Em O Paradoxo da Espera do Ônibus um rapaz devaneia sobre os modos possíveis de voltar para casa ao final do dia, enquanto espera o transporte público em um ponto de ônibus da cidade.

  3. Falando para quem assiste
    O solilóquio é o momento em que no teatro ou no cinema o/a personagem se dirige para câmera ou para a platéia, ou seja, direciona-se para para o público e divide com ele impressões e devaneios, num discurso direto. Pode ser uma piscadela ou um levantar de sobrancelhas, como se comentasse com o público o que acontece em cena, “quebrando a quarta parede”. Esse é um recurso recorrente nos filmes de humor. Mas também pode aparecer em uma história imensamente dramática, como é o caso do solilóquio do curta Dona Sônia pediu uma arma para seu vizinho Alcides, em que um personagem aparentemente externo ao universo do filme, conta o que aconteceu com Dona Sônia.

    Em Recife Frio – uma paródia de um documentário, com muito humor e ares de ficção científica -, o apresentador volta e meia fala com a câmera: “Este é o ‘Mundo em Movimento’, esta semana vamos a cidade brasileira de Recife para investigar um curioso caso. Uma mudança climática que está revolucionando uma cultura inteira e está desafiando a comunidade científica internacional.”

    Essa conversa com quem assiste o filme também pode acontecer por voice-over – ou seja, enquanto imagens passam pela tela, a personagem narra a sua história. Quando a própria personagem narra toda ou parte da história em primeira pessoa oferece também uma perspectiva específica do que aconteceu. Em documentários autobiográficos esse é um recurso comum. É o que acontece, por exemplo, em boa parte de Rebu – A egolombra de uma sapatão quase arrependida, documentário no qual Mayara Santana discorre sobre seus relacionamentos afetivos anteriores e as possíveis relações com suas questões de origem e identidade. Há momentos em que Mayara utiliza também o discurso direto, ou seja, fala em cena, por exemplo, enquanto caminha por um calçadão e conta para a câmera: “a gente tinha dois sonhos (…) um era poder namorar na praia, feito qualquer casal hétero. E outro era poder cozinhar juntas na casa de alguém.”

    Travessia começa com uma fotografia de uma mulher negra segurando um bebê – identificada por “Tarcisinho e sua babá” – enquanto o poema “Vozes Mulheres” de Conceição Evaristo é declamado por Inaê Moreira. Na sequência seguinte, enquanto uma jovem negra mostra uma série de fotografias de família, a voz de uma senhora em segundo plano conta sobre o acesso limitado que famílias negras costumavam ter à registros fotográficos. A voz de Travessia é feita de muitas vozes de diferentes gerações de pessoas negras, invisibilizadas pelo racismo estrutural da sociedade brasileira e que no filme reverberam numa colagem de poesia, contação de história e música, entre imagens do passado e do presente.

    Vinil Verde tem um narrador que nos conta a história de uma “mãe” que pediu à uma “filha” que jamais escutasse um “vinil verde”, começando com o clássico “era uma vez”, ao modo das fábulas infantis. Esse tipo de narrador não é um personagem da história, mas um narrador onisciente que costumamos tomar por “confiável”. Em Vinil Verde as personagens não têm diálogo direto, e quem narra conversas entre mãe e filha é o narrador.

Silvia Adela Kohan explica que diálogos precisam ter intencionalidade definida, precisão, naturalidade, fluidez, coerência, poder de sugestão, verossimilhança, interação e continuidade. Há, evidentemente, muitos modos de se falar nos filmes e o que é falado também será lido a partir do contexto do enunciado, de gestos, ações, personagens e lugares associados ao que se fala.

Existe ainda o dito, o não dito e o indizível, que Robert McKee define assim:
“O dito são as ideias e emoções que uma personagem escolhe expressar para os outros. O não dito são os pensamentos e sentimentos que uma personagem expressa apenas para si mesma com uma voz interior. O indizível são os desejos e necessidades subconscientes que uma personagem não consegue expressar em palavras, nem mesmo para si própria, por serem ocultos e estarem além da consciência.”

Repare nos diálogos que mais gosta dos seus filmes favoritos. O que eles têm de especial? Qual deles você nunca pôde esquecer? O que seu personagem querido não está dizendo?

Referências:
KOHAN, Silvia Adela. Como escrever diálogos. A arte de desenvolver diálogos no romance e no conto. Belo Horizonte: Gutenberg Editora, 2011.
MCKEE, Robert. Diálogo. A arte da ação verbal na página, no palco e na tela. Curitiba: Editora Arte e letra, 2018.


FRANÇA, Ana Claudia C. V. de. O que é um diálogo?. Blog Plástico Bolha, 2021. Acesso em: . Disponível em: <https://anafranca.com.br/o-que-e-um-dialogo/>.


Publicado por Ana França

Sou professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campo de Narrativas Visuais e Produção da Imagem. No doutorado pesquisei sobre mulheres no circuito de cinema em Curitiba, entre 1976 e 1989 (PPGTE/UTFPR). Dedico-me a projetos em narrativas visuais e investigações sobre mulheres no audiovisual, nos cruzamentos entre história, narrativa, literatura, texto e imagem.