Aulas

Curta-metragem, formas breves e a disciplina de audiovisual

audiovisual no curso de design

A disciplina de Audiovisual é oferecida pelo departamento de Design da UTFPR. Isso significa que, muitas pessoas, muitas vezes no final do curso de Design, vão experimentar a produção de um audiovisual pela primeira vez. Costumo dizer que o audiovisual tangencia o Design, mas contamina a vida. Estamos imersas numa profusão de narrativas audiovisuais cotidianamente. O audiovisual é, enfim, uma linguagem que pode ser usada de muitos modos, nas redes sociais, nas plataformas de streaming ou nas coleções de DVDs. O wikipedia apresenta o audiovisual assim:

Mais recentemente, por influência da língua francesa, audiovisual passou a caracterizar o conjunto de todas as tecnologias, formas de comunicação e produtos constituídos de sons e imagens com impressão de movimento — abrangendo, portanto, o cinema ficcional ou documental, a televisão aberta ou fechada e todos os seus gêneros, o vídeo analógico ou digital, de alta ou baixa definição, a videoarte e o cinema experimental, a animação tradicional ou computadorizada e também formatos mais ou menos autônomos como o comercial de publicidade, o videoclipe, os programas de propaganda política, o videogame, o making of, as transmissões ao vivo em circuito fechado, os vídeos feitos para exibição na internet ou em telefones móveis, etc.

Wikipedia

audiovisual como linguagem

Quando afirmo que o audiovisual é uma linguagem é porque existem características e aspectos próprios desse modo de expressão. A característica mais evidente é a sua constituição por som e imagem. O livro “A linguagem do cinema” explica também que “o filme pode agregar em si todas as outras artes: fotografia, pintura, teatro, música, arquitetura, dança e, claro, a palavra falada. Tudo pode chegar ao cinema – grande ou pequeno, natural ou fantástico, bonito ou grotesco”. Eu acrescentaria ainda o forte diálogo que o audiovisual tem com a literatura e a televisão.

Ao longo da história, algumas convenções de produção audiovisual foram se estabelecendo. Há modos de compor e enquadrar uma história audiovisual. Uma gramática vastamente discutida em manuais de roteiro ou de direção cinematográfica. Mas, para cada forma audiovisual, essas convenções variam e podem ser reconfiguradas. Há elementos técnicos e estéticos específicos para cada tipo de produção.

Dentre tantas possibilidades audiovisuais, a disciplina vai se debruçar nos curtas-metragens, sobretudo, brasileiros. Por quê? Porque ao final da disciplina você terá produzido um curta-metragem. E conhecer as especificidades e possibilidades dos filmes de duração curta é mais interessante, nesse caso. É também sempre estimulante conhecer a produção nacional, que nos permite vislumbrar as possibilidades do nosso próprio território. São produções que variam no custo de produção, mas que foram feitas, em geral, em circunstâncias limitadas de orçamento. E por aqui, na disciplina de Audiovisual, nosso orçamento costuma ser muito baixo. Ainda assim, dá pra fazer coisas muito legais. E há muitos filmes curtos brasileiros que nos contam isso!

curta-metragem: uma forma breve

No livro “Criação de curta-metragem em vídeo digital – uma proposta para produções de baixo custo”, o autor Alex Moletta (Brasil) explica do seguinte modo “o curta-metragem cinematográfico equipara-se ao conto na literatura ou ao haicai na poesia: trata-se de uma forma breve e intensa de contar uma história ou expor um personagem. É um momento curto em que o público quer saber o que vai acontecer no segundo seguinte, mesmo que nesse espaço de tempo efêmero o personagem tenha passado por uma vida inteira”. Moletta ainda destaca que o curta-metragem é caracterizado pela precisão, coerência, densidade, unidade de ação ou impressão parcial de uma experiência humana”. Pode durar, 5, 10 ou 15 minutos. A história precisa ser contada de forma breve e impactante.

Bem, o Alex Moletta estabelece uma aproximação entre o curta-metragem e o conto. Mas o que é um conto?

O conto é uma forma de texto marcada pela brevidade, e relativamente recente, com idade de mais ou menos 200 anos. Mas, muito antes do conto, já havia formas narrativas breves ancestrais, pautadas na oralidade, como os contos de fadas e as parábolas. No livro “Formas Simples”, André Jolles (1874-1946, Países Baixos) elenca como formas breves a saga, o mito, a adivinha, o ditado, o caso, o conto, o chiste. O autor explica que o conto só ganhou status de forma literária com a publicação “Contos para Crianças e Famílias”, dos Irmãos Grimm. Mas, desde o século 18 circulavam contos de fadas, contos de magia e fantasmagoria e anedotas. André Jolles explica que um conto narra um fato ou um incidente, de modo que o fato ou o incidente têm mais importância do que os personagens.

um conto conta sempre duas histórias

Mas, há modos mais contemporâneos de pensar essa forma literária. Ricardo Piglia (1941-2017, Argentina), no livro “Formas Breves”, explica que “um conto sempre conta duas histórias”. Ao menos, no conto clássico, em primeiro plano é narrada a história 1, e em segredo é construída a história 2. Como exemplo desse jogo narrativo inquietante, Ricardo Piglia apresenta a famosa anedota registrada em um caderno de notas do escritor Anton Tchekhov (1860-1904, Rússia):

“Um homem em Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, suicida-se”

em: Formas breves, de ricardo piglia.

Ora, como um homem ganha um milhão para em seguida tirar a própria vida? Eis uma contradição, um segredo, que não é revelado. Mas é justamente este segredo que torna a anedota intrigante. O que faria um homem se suicidar nestas circunstâncias?

Um outro modo de pensar o conto é pela teoria do iceberg, proposta por Ernest Hemingway (1889-1961, Estados Unidos) e também apontada por Piglia, que a explica do seguinte modo: “o mais importante nunca se conta. A história é construída como o não-dito, com o subentendido e a alusão.” O conto para Piglia é, enfim, “um relato que encerra um relato secreto”.

por trás de tudo: a contação de histórias

Por trás destas possibilidades narrativas, estão sempre as histórias. Contar histórias é uma das condições humanas mais básicas. A contação de histórias constitui nossas relações familiares e afetivas, além de boa parte do conteúdo das redes sociais e de comunicação. Walter Benjamin (1892-1940, Alemanha) conta que quem pede um conselho, precisa na verdade é de ajuda para continuar uma história. Um casal que se encontra depois de um dia de trabalho também leva um punhado de histórias pra contar. Com a sua imensa capacidade de representação, as histórias, ficcionais ou não, constituem e transformam continuamente o nosso modo de pensar e de estar no mundo.

É nessa articulação entre audiovisual, cinema, linguagem e formas breves que a disciplina de audiovisual vai caminhar.

Referências
BENJAMIN, Walter. O contador de histórias e outros textos. São Paulo: Hedra, 2020.
HUNT, Robert Edgar; MARLAND, John; RAWLE, Steven. A linguagem do cinema. Porto Alegre: Bookman, 2013.
JOLLES, André. Formas Simples. São Paulo: Editora Cultrix, 1976.
MOLETTA, Alex. Criação de curta-metragem em vídeo digital. Uma proposta para produções de baixo custo. São Paulo: Summus Editorial, 2009.
PIGLIA, Ricardo. Formas breves. São Paulo: Companhia das Letras.


FRANÇA, Ana Claudia C. V. de. Curta-metragem, formas breves e a disciplina de audiovisual. Blog Plástico Bolha, 2022. Acesso em: . Disponível em: <https://anafranca.com.br/curta-metragem-formas-breves-e-a-disciplina-de-audiovisual/>.


Publicado por Ana França

Sou professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campo de Narrativas Visuais e Produção da Imagem. No doutorado pesquisei sobre mulheres no circuito de cinema em Curitiba, entre 1976 e 1989 (PPGTE/UTFPR). Dedico-me a projetos em narrativas visuais e investigações sobre mulheres no audiovisual, nos cruzamentos entre história, narrativa, literatura, texto e imagem.