POR ESCRITO

A escala subseqüente da viagem não feita

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

UMA ARTE, de ELIZABETH BISHOP, tradução de Paulo Henriques Britto.

Nadar, nadar e morrer na praia. Perder o jogo no último minuto do segundo tempo. Escapar do Titanic afundando, mas congelar no mar à espera do salvamento. Não é à toa que o cinema e a literatura estão povoados de histórias em que muito trabalho e algum sucesso pelo caminho terminam em fracasso total. É que esse tipo de enredo costuma se desenrolar na vida. Mas na vida a narrativa é confusa, não tem começo, meio e fim, causa e efeito, uma cena levando à outra, tensão crescente, ponto de virada, clímax e resolução. Na vida há controles precários, rupturas dolorosas e caminhos aleatórios.

Em geral perco meias, contas de luz, chaves, cartões de crédito, tampas de caneta, receitas médicas e potes emprestados. O pacote básico de coisas perdidas. Mas esta semana foi grave. Perdi uma viagem. Era para Maputo e Luanda, cidades de Moçambique e Angola. Ia apresentar um artigo sobre um curta-metragem brasileiro. Conhecer, enfim, um pedaço do continente africano. Três meses entre inscrição, burocracia, escrita, pesquisa, dezenas de listas e muito trabalho. Escrever um artigo, pedir afastamento e dinheiro de uma universidade pública no meio do semestre acadêmico requer muitos documentos, boas justificativas e um planejamento cuidadoso.

A mala ficou pronta dias antes do embarque. Adoro a parte do planejamento cuidadoso pois odeio palpitação no peito porque algo importante ficou para última hora. Ao que parece, sou bem diferente da comissão de vistos do congresso, que ficou responsável pelos trâmites com a imigração, mas falhou na negociação do que se propunha fazer. Eu e mais um tanto de pessoas ficamos de fora da lista de nomes autorizados a embarcar. A solução improvisada foi uma carta do evento que funcionou para algumas pessoas, mas não para todas. Diante das orientações da agente de viagens, dos relatos de quem foi barrada no embarque, da falta de garantias por parte da companhia aérea, da embaixada de Moçambique ou da organização do evento, decidi cancelar a viagem e participar à distância. Não adianta chorar pelo leite derramado. Fazer do limão, limonada. Vão-se os anéis, ficam-se os dedos. Desfaz-se a mala, ficam os potinhos de 100 ml com creminhos e afins no armário do banheiro. Há também um bocado de provérbios e expressões para aliviar a dor de um fracasso.

Elizabeth Bishop escreveu num poema que a arte de perder não é nenhum mistério. Afinal, são tantas as coisas que contém em si o acidente de perdê-las. Duas cidades lindas, o relógio de mamãe, três casas excelentes. Bem, antes de chegar ao poema de Bishop assisti muita sessão da tarde, e nessas horas gosto de delirar pensando que há planos maiores para esta semana em que eu deveria estar molhando os pés no oceano índico. Por exemplo, engravidar de gêmeos que serão chamados de Luanda e Maputo. Encontrar Caetano Veloso na praça Eufrásio Correia, tocando violão num fim de tarde. Abraçar Dilma na pastelaria Juvevê, com um pastel de palmito numa mão, um molhinho de pimenta na outra. Convencer três pessoas na fila do correio, e outras quatro nos corredores da Casa China, a votar no Lula no primeiro turno. Protagonizar o novo videoclipe descolado da mais nova banda descolada da cidade.

Mas a vida não é sessão da tarde. E é muito provável que nada extraordinário aconteça para justificar a viagem que perdi, e esta seja só mais uma semana banal, como tantas outras. No máximo, um tour guiado pelas farmácias do bairro, em busca da solução de limpeza mais barata para lentes de contato. Perder é um baita mistério, Elizabeth. Acho, aliás, que você concorda e escreveu um poema que é pura ironia. Acho também que você adoraria ouvir comigo Elis Regina cantando no Guaíra, numa noite estrelada e quente, a música que diz: vivendo e aprendendo a jogar, nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas, aprendendo a jogar! Depois do show, a gente caminharia devagar, tomaria um bom drink, e eu ia perguntar tudo sobre como perder mais, e com mais critério. Lugares, nomes. E a escala subseqüente da viagem não feita.


FRANÇA, Ana Claudia C. V. de. A escala subseqüente da viagem não feita. Blog Plástico Bolha, 2022. Acesso em: . Disponível em: <https://anafranca.com.br/a-escala-subsequente-da-viagem-nao-feita/>.


Publicado por Ana França

Sou professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campo de Narrativas Visuais e Produção da Imagem. No doutorado pesquisei sobre mulheres no circuito de cinema em Curitiba, entre 1976 e 1989 (PPGTE/UTFPR). Dedico-me a projetos em narrativas visuais e investigações sobre mulheres no audiovisual, nos cruzamentos entre história, narrativa, literatura, texto e imagem.