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Cinco princípios para escrever

Seis propostas para o próximo milênio – lições americanas (com tradução de Ivo Barroso e edição da Companhia das Letras) é um livro do escritor Ítalo Calvino (Santiago de las Vegas, Cuba, 1923 – Siena, Itália, 1985). O livro é resultado de um ciclo de conferências que Calvino preparava para a Universidade de Harvard, em Cambridge, num evento chamado “Charles Eliot Norton Poetry Lectures”. Para cada encontro que ocorreria no decorrer do ano letivo de 1985-86, Calvino falaria de um princípio literário – “alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros”, como explica Calvino – para o próximo milênio, esse que se aproximava logo ali, há 15 anos de distância. Calvino faleceu antes que pudesse terminar os manuscritos que guiariam as apresentações, e sua esposa, Esther Calvino, editou os materiais que estavam sendo preparados. Sobre a escolha dos princípios, no segundo capítulo Calvino ressalta, “qualquer valor que escolha como tema de minhas conferências – já o disse a princípio – não pretende excluir o seu valor contrário: assim como em meu elogio à leveza estava implícito meu respeito pelo peso”.

Do prefácio do livro “Seis propostas para o próximo milênio”, de Ítalo Calvino.

Nesta postagem, partindo do livro de Calvino, apresento brevemente cada um dos princípios, incluindo poemas e trechos de textos contemporâneos que entendo como exemplos do que o autor estava a nos falar em 1985. São cinco os princípios trabalhados por Calvino:

leveza - rapidez - exatidão - visibilidade - multiplicidade  

leveza

Sem menosprezar o valor do peso, Calvino argumenta em favor da leveza. E a imagem que nos oferece para abrir o ensaio sobre a “leveza” narrativa é de Perseu, o único herói que – vestindo sandálias aladas – foi capaz de decepar a cabeça da Medusa. Medusa é a famosa criatura com serpentes no lugar dos fios de cabelo que transformava em pedra quem a olhasse. Como explica Calvino, “para decepar a cabeça de Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho. Sou tentado de repente a encontrar nesse mito uma alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição do processo de continuar escrevendo”.

Perseu recusa assim a visão direta de Medusa para vê-la refletida apenas no seu escudo de bronze, contudo não recusa a realidade, como explica Calvino. Perseu deposita a cabeça dessa terrível figura em um ninho de folhas e algas, com a face voltada para baixo, ao que Calvino conclui: “A leveza de que Perseu é o herói não poderia ser melhor representada, segundo penso, do que por esse gesto de refrescante cortesia para com um ser monstruoso e tremendo, mas mesmo assim de certa forma perecível, frágil.”

Em outros exemplos, Calvino nos leva a perceber a inescapável relação entre o peso – que “está em toda forma de opressão; a intrincada rede de constelações públicas e privadas acaba por aprisionar cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas” -, e a leveza, – que pode estar na “compacidade do mundo, na percepção do que é infinitamente minúsculo, móvel e leve”. O poeta e filósofo Lucrécio (94-50 a. C.), por exemplo, “pulveriza” a concretude da realidade ao narrar “os grãos de poeira que turbilhonam num raio de sol, na penumbra de um quarto; as pequeninas conchas, todas iguais e todas diferentes, que a onda empurra docemente […] as teias de aranha que nos envolvem sem que nos demos conta, enquanto passeamos”.

Para Calvino, a leveza está “associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório”. É a leveza que possibilita dissolver o drama em “melancólica ironia”, pois “assim como a melancolia é a tristeza que se tornou leve, o humor é o cômico que perdeu peso corpóreo”. Contudo, “não se trata, pois, dessa melancolia compacta e opaca, mas de um véu de ínfimas partículas de humores e sensações, uma poeira de átomos como tudo aquilo que constitui a última substância da multiplicidade das coisas”:

…mas é uma melancolia muito particular, composta de vários elementos simples, extraída de vários objetos, e de fato as inúmeras lembranças de minhas viagens, com frequência ruminadas, envolvem-me numa tristeza ressumada de graça.

definição de melancolia do personagem Jacques; em AS YOU LIKE IT, IV 1,de Shakespeare)

Calvino nos apresenta “a busca da leveza como reação peso do viver”. Há muitas histórias em que um xamã transporta seu corpo a um outro mundo, heróis voam com criaturas aladas ou tapetes mágicos, e ainda, as bruxas viajam montadas em cabos de vassoura, o que Calvino interpreta como um “nexo entre a levitação desejada e a privação sofrida”. Para sustentar esse argumento, Calvino termina o ensaio sobre a leveza com um conto de Kafka: O cavaleiro do balde.

sem saudade de você
sem saudade mim
o passado passou enfim

Alice Ruiz

Na poça da rua
O vira-lata
Lambe a Lua.

Millôr Fernandes

Nos haicais de Alice Ruiz e Millôr Fernandes, o peso de um amor que terminou é dissipado pela indiferença e a dimensão da lua se coloca ao alcance da língua de um vira-lata. De um modo parecido, a personagem do romance “Correntes” nos apresenta sua teoria sobre o mundo caber na glândula pineal.

Contudo, eu tenho outra opinião sobre o tempo. O tempo de todos os viajantes é constituído por tempos múltiplos, uma complexidade dentro de um único tempo. É o tempo da ilha, arquipélagos de ordem num oceano do caos, um tempo produzido pelos relógios nas rodoviárias, diferente em todos os lugares, tempo convencional, tempo médio, que ninguém deveria levar muito a sério. As horas que desaparecem num avião em voo, o amanhecer que chega num instante com a tarde e a noite em seu encalço. O tempo agitado das grandes cidades onde você está por pouco tempo, querendo cair nas garras da noite, e o tempo preguiçoso das planícies desabitadas vistas do avião.

Penso também que o mundo cabe dentro de um sulco no cérebro, na glândula pineal. Esse globo pode ser só um nó na garganta. Na verdade, você pode tossir e cuspi-lo.

correntes, de Olga Tokarczuk.

rapidez

O ensaio de Calvino sobre a rapidez começa com uma lenda:

O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano, entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para a sua câmara, recusando separar-se dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens.

Trecho de: Italo Calvino. “Seis propostas para o próximo milênio – Lições americanas”. iBooks.

Para Calvino, o fascínio dessa história está na “sucessão de acontecimentos que escapam todos à norma, encadeados um ao outro: a paixão de um velho por uma jovem, uma obsessão necrófila, uma propensão homossexual, e no fim tudo se aplaca numa contemplação melancólica, com o velho rei absorto à vista do lago”. Há ainda, um “liame verbal”, um fio que conecta todos os eventos, o “amor”, talvez “paixão”, incorporado no anel mágico, “que estabelece uma lógica, de causa e efeito, entre os vários episódios”. É também na rápida sucessão dos acontecimentos que se constrói espaço para imaginação. Para Calvino, “o segredo está na economia da narrativa em que os acontecimentos, independentemente de sua duração, se tornam punctiformes, interligados por segmentos retilíneos, num desenho em zigue-zagues que corresponde a um movimento ininterrupto.”

Calvino lembra que o tempo narrativo pode ser desacelerado, cíclico ou imóvel, contrair-se ou dilatar-se. Contudo, a rapidez é um traço importante das narrações orais, dos contos populares ou fábulas infantis, que operam no ritmo da contação de histórias e da escuta, e nas quais se espera a repetição de “situações, frases, fórmulas”. Nessas histórias “a economia da expressão” é muito importante, e “as peripécias mais extraordinárias são relatadas levando em conta apenas o essencial”.

A história das Mil-e-uma-noites nos conta que Sheherazade salva sua vida a cada noite por saber “encadear uma história a outra, interrompendo-a no momento exato: duas operações sobre a continuidade e a descontinuidade do tempo. É um segredo de ritmo […]”. O tempo narrativo opera entre a velocidade física e a velocidade mental, o tempo objetivo e o tempo subjetivo que atravessa as experiências.

A rapidez também pode ser importante para um texto argumentativo, com “a agilidade do raciocínio, a economia de argumentos”, que Calvino encontra em textos de Galileu e nós podemos igualmente encontrar nas boas crônicas brasileiras. Calvino pondera, “a divagação ou digressão é uma estratégia para protelar a conclusão, uma multiplicação do tempo no interior da obra, uma fuga permanente […]”, contudo imagina “imensas cosmologias, sagas e epopeias encerradas nas dimensões de um epigrama”.

Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.

Augusto monterroso

Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. “Preciso de outros cinco anos”, disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu.

história chinesa

VIDA RÁPIDA

Toda manhã a gente toma café
na xicrinha de ágata vermelha.
Um dia ela permanece limpa limpa
sobre a toalhinha branca branca.

Alcides Villaça, no livro Ondas Curtas

No poema de Alcides Villaça uma vida inteira se passa no uso de uma xicrinha vermelha.

HISTÓRIA

Tenho 39 anos.
Meus dentes têm cerca de 7 anos a menos.
Meus seios têm cerca de 12 anos a menos.
Bem mais recentes são meus cabelos
e minhas unhas.
Pela manhã como um pão.
Ele tem uma história de 2 dias.
Ao sair do meu apartamento,
que tem cerca de 40 anos,
vestindo uma calça jeans de 4 anos
e uma camiseta de não mais do que 3,
troco com meu vizinho
palavras
de cerca de 800 anos
e piso sem querer numa poça
com 2 horas de história
desfazendo
uma imagem
que viveu
alguns segundos

Ana Martins marques

exatidão

Calvino explica que para ele, exatidão quer dizer três coisas: “1. um projeto de obra bem definido e calculado; 2. a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis;[…] 3. uma linguagem que seja a mais precisa possível como léxico e em sua capacidade de traduzir as nuanças do pensamento e da imaginação.”

Para Calvino, ainda que a favor do vago e indeterminado, “é necessário a atenção extremamente precisa e meticulosa”, com “a definição minuciosa dos detalhes, na escolha dos objetos, da iluminação, da atmosfera. […] o poeta do vago só pode ser o poeta da precisão”. Calvino exalta a singularidade ao contar que Roland Barthes “indagaria sobre a possibilidade de concebermos uma ciência do único e do irrepetível”. Calvino mesmo se entrega ao singular ao escrever: “uma outra vertigem então se apodera de mim, a do detalhe do detalhe do detalhe, vejo-me tragado pelo infinitesimal, pelo infinitamente mínimo, como antes me dispersava infinitamente vasto.” Ainda, sempre, “a linguagem se revela lacunosa, fragmentária, diz sempre algo menos com respeito à totalidade do experimentável”. Na exatidão a dúvida e o mistério também são construídos.

Eu estava rígido e frio, era uma ponte, estendido sobre um abismo. As pontas dos pés cravadas deste lado, do outro as mãos, eu me prendia firme com os dentes na argila quebradiça. As abas do meu casaco flutuavam pelos meus lados. Na profundeza fazia ruído o gelado riacho de trutas. Nenhum turista se perdia naquela altura intransitável, a ponte ainda não estava assinalada nos mapas. — Assim eu estava estendido e esperava; tinha de esperar. Uma vez erguida, nenhuma ponte pode deixar de ser ponte sem desabar.

Certa vez, era pelo anoitecer — o primeiro, o milésimo, não sei —, meus pensamentos se moviam sempre em confusão e sempre em círculo. Pelo anoitecer, no verão, o riacho sussurrava mais escuro — foi então que ouvi o passo de um homem! Vinha em direção a mim, a mim. — Estenda-se, ponte, fique em posição, viga sem corrimão, segure aquele que lhe foi confiado. Compense, sem deixar vestígio, a insegurança do seu passo, mas, se ele oscilar, faça-se conhecer e como um deus da montanha atire-o à terra firme.

Ele veio; com a ponta de ferro da bengala deu umas batidas em mim, depois levantou com ela as abas do meu casaco e as pôs em ordem em cima de mim. Passou a ponta por meu cabelo cerrado e provavelmente olhando com ferocidade em torno deixou-a ficar ali longo tempo. Mas depois — eu estava justamente seguindo-o em sonho por montanha e vale — ele saltou com os dois pés sobre o meio do meu corpo. Estremeci numa dor atroz, sem compreender nada. Quem era? Uma criança? Um sonho? Um salteador de estrada? Um suicida? Um tentador? Um destruidor? E virei-me para vê-lo. — Uma ponte que dá voltas! Eu ainda não tinha me virado e já estava caindo, desabei, já estava rasgado e trespassado pelos cascalhos afiados, que sempre me haviam fitado tão pacificamente da água enfurecida.

“A Ponte”, de franz kafka

visibilidade

Segundo Calvino há “dois tipos de processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que parte da imagem visiva para chegar à expressão verbal. O primeiro processo é o que ocorre normalmente na leitura: lemos por exemplo uma cena de romance ou a reportagem de um acontecimento num jornal, e conforme a maior ou menor eficácia do texto somos levados a ver a cena como se esta se desenrolasse diante de nossos olhos, se não toda a cena, pelo menos fragmentos e detalhes que emergem do indistinto.”

Calvino explica como uma imagem pode funcionar no seu processo de escrita: “A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é, pois, uma imagem que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba formular em termos discursivos ou conceituais. A partir do momento em que a imagem adquire uma certa nitidez em minha mente, ponho-me a desenvolvê-la numa história, ou melhor, são as próprias imagens que desenvolvem suas potencialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si. Em torno de cada imagem escondem-se outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições.”

Para Calvino “a mente do poeta, bem como o espírito do cientista em certos momentos decisivos, funcionam segundo um processo de associações de imagens que é o sistema mais rápido de coordenar e escolher entre as formas infinitas do possível e do impossível.”

Na década de 1980, Calvino já podia observar os efeitos da profusão imagética na sensibilidade humana. Para Calvino olhar é um exercício de atenção, cada vez mais prejudicado pelos excessos: “Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo.” E por isso, Calvino faz um alerta, “se incluí a visibilidade em minha lista de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, de pensar por imagens.”

Para os anos 2000, Calvino previa dois caminhos: 1. a reciclagem de imagens usadas, recolocando-as em um novo contexto, com novos significados e algum estranhamento. 2. “apagar tudo e recomeçar do zero”, à maneira de Samuel Beckett.

Há uma diferença, no entanto, entre o excesso que leva a saturação e a multiplicidade, o último princípio escrito por Calvino.

multiplicidade

Apoiando-se em Aristóteles e Kant, Calvino argumenta em favor da necessidade de “substituir a causa pelas causas”, “reformar em nós o sentido de categoria de causa”, uma vez que “as catástrofes inopinadas não são jamais a consequência ou o efeito, como se costuma dizer, de um motivo único, de uma causa singular: mas são como um vórtice, um ponto de depressão ciclônica na consciência do mundo, para as quais conspirava toda uma gama de causalidades convergentes”. Desse modo, a multiplicidade que Calvino nos propõe nos abre para a complexidade e multidimensionalidade do mundo.

Calvino nos fala do romance contemporâneo como “enciclopédia, como método de conhecimento, e principalmente como rede de conexões entre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas do mundo”, com exemplos do escritor Carlo Emilio Gadda, que na opinião de Calvino “vê o mundo como um ‘sistema de sistemas’, em que cada sistema particular condiciona os demais e é condicionado por elas”, e acrescenta, “Gadda durante toda a sua vida buscou representar o mundo como um rolo, uma embrulhada, um aranzel, sem jamais atenuar-lhe a complexidade inextricável – ou, melhor dizendo, a presença simultânea dos elementos mais heterogêneos que concorrem para a determinação de cada evento.”

Para Calvino, “o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo.”

Correntes, de Olga Tokarczuk é um romance que dispersa a vida de uma personagem em múltiplos fragmentos de viagem, que podem ter poucas linhas ou muitas páginas, possibilitando também muitos caminhos de leitura, desviando da ideia de um história linear e de um conflito bem delineado.

Lembrete

Lembrar que
enquanto andamos
por estas ruas banais
sob um céu inestrelado
templos brancos como ossos
repousam entre oliveiras
quase igualmente antigas

uma mulher desfaz
sobre a nudez noturna
sua trança pesada

um pequeno lama
cabeceia de sono

e há leões e laranjas
falcões e hangares
anêmonas e zinco

um bando de antílopes
atravessa um pedaço de terra
como este
deixando-o depois
vazio de sinais

em silêncio um homem prepara
menos comida do que ontem

um a um
partem os barcos
de passeio

chove intensamente
sobre teleféricos

uma mulher vê
a cidade acender-se
à medida que anoitece
e para acalmar-se
conta as janelas
iluminadas

arrumam-se armários
roupas de pessoas mortas
envelhecem corpos jovens

envelhecem também
os automóveis
e as máquinas agrícolas

com uma rede veloz
recolhem-se do mar
peixes luminosos
que então serão deixados
afogando-se na areia

alguém conhece
pela primeira vez
a enguia, o sexo, a escrita

pensar que devemos estar
à altura
disso

Ana Martins marques


FRANÇA, Ana Claudia C. V. de. Cinco princípios para escrever. Blog Plástico Bolha, 2021. Acesso em: . Disponível em: <https://anafranca.com.br/cinco-principios-para-escrever/>.


Publicado por Ana França

Sou professora no Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), no campo de Narrativas Visuais e Produção da Imagem. No doutorado pesquisei sobre mulheres no circuito de cinema em Curitiba, entre 1976 e 1989 (PPGTE/UTFPR). Dedico-me a projetos em narrativas visuais e investigações sobre mulheres no audiovisual, nos cruzamentos entre história, narrativa, literatura, texto e imagem.